2.8.07

A Moça Bonita

Lembro-me que, quanto tinha mais ou menos onze anos, talvez dez, fui brincar na casa de um vizinho da minha avó, na praia, durante as férias de verão. Ele tinha recebido a visita de uma prima, que era um pouquinho mais nova que eu (tinha, portanto, dez anos, talvez). Não me lembro o nome dela; não me lembro quanto tempo ela ficou. Lembro-me apenas que ela tinha uma cicatriz enorme no rosto, que se prolongava por toda a bochecha. Essa cicatriz chamou minha atenção imediatamente quando a vi, lembro-me de ter tido algum pensamento de compaixão.

Esse meu amigo montava uma piscina de plástico na frente da casa. Brincávamos muito na piscina. Lembro-me de ter mergulhado e machucado a barriga no fundo. E de mais um ou outro detalhe. Eu não me lembro de muitos fatos, mas eles também não tinham muita importância.

Um dia, a menina foi embora. Eu fui me despedir. Disse apenas "tchau", e ouvi o mesmo. Ela, então, entrou na casa, pra terminar de arrumar as coisas e eu fui pra casa da minha avó. Sentei-me numa rede que havia na garagem e comecei a balançar com força. Continha o choro como podia. Uma vizinha, que passou em frente, comentou baixinho com a minha avó (mas eu ouvi): "Ele está triste. Estava apaixonada por ela (disse o nome da menina, que eu não sei mais qual é)". Eu estava mesmo. Muito. Mas tive vergonha de ser descoberto.

Nunca mais vi a menina. Lembro-me apenas do rosto dela, do cabelo preto, liso, curto, da estranheza que me causou a cicatriz, inicialmente, e do tamanho da ternura que eu sentia, ao final. Também me lembro do nó na garganta, que custava a sair. Engoli a história, junto com o choro, mas não esqueci. Lembrei-me quando li, recentemente, este conto maravilhoso do Rubem Braga, que descreve a mesmíssima situação, porém com muito mais qualidade...


A MOÇA RICA
Rubem Braga

A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho de cavalo; depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma lamparina.

Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros, saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do Sertão e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.

Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o rapaz de suéter e sapado de basquete, que costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert, não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar nem com motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.

Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu viajava a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pela escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar fino da manhã.

E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou da minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.

De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.

Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu disse: “Não é isso”. Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte, foi-se embora.

Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns camarões vivos para isca; e o relincho diante de um cavalo me fez lembrar a moça bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto adiantasse alguma coisa.


(Extraído do livro "Os melhores Contos de Rubem Braga", seleção de David Arrigucci, 7ª Ed., São Paulo, págs. 39 e 40)

2 Comentários:

At 3:56 PM, Blogger Principessa said...

Nós sempre questionamos nossas escolhas... Vou te contar o que você viu nela: uma serenidade rara que provavelmente era muito mais importante do que o cabelo loiro e a pele lisa que ela não tinha, uma covinha na bochecha esquerda que estranhamente ninguém notava, que ela era talvez uma sonhadora incorrigível, você a viu chorando.

 
At 4:33 PM, Anonymous Anônimo said...

mano deixa o moleke ser triste em pais se n tem que ficar dando uma de filosofo so pq o muleque revelou a sua vida que vc tem que dar liçoes de pq ele achou a mina interessante.
vc tem que ler o conto ou n ler nada e n da cum comentario tao bos.. assim.
bem xao.
como me conhecem na internet ass:bigpig

 

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