20.8.07

Freedom Jazz Dance

A bateria tem apenas quatro peças. A música se inicia com uma batidinha na caixa, seguida do ritmo ditado pelo prato, tocado no pedal. Ritmo rápido, intercalado pela caixa. Entra o clarinete, com uma intervenção rápida, póroro-pó. O rapaz da mesa da frente sorri e pega a mão da menina que estava com ele, que também sorri. Mas nem ele está pensando nela, nem ela está pensando nele. Apesar disso, ficaram noivos há pouquíssimo tempo. O clarinetista vê os dois e, novamente, intervém, rapidamente, com algumas notas como se fossem dedicadas ao casal. Agora os pratos são acompanhados pela caixa, num ritmo sempre rápido, tst, tst, ts, pápapa-pá. Uma menina sozinha, no balcão, olha pra trás. Depois, pra porta. Os três rapazes da mesa do centro não prestam tanta atenção. O da ponta, acompanha o ritmo com o dedo. Ele é sozinho e está cansado... quer se apaixonar. Os outros dois, sem descobrir o próprio coração conversam e riem alto. Um deles é sabe que é bissexual, mas guarda-o em segredo, não admite nem pra si próprio. O outro, não questiona sua sexualidade, sabe que tem de seguir a maré. O bissexual olha provocantemente para uma menina da mesa ao lado e cutuca o amigo. Ele adora mostrar virilidade. O outro olha a menina e faz um trejeito 'conquistador', que na verdade é nojento. O jazz corre solto. Essa cobiçada menina da mesa ao lado está com uma amiga, que reclama do namorado, mas ela não ouve muito. Ela queria encontrar um amor sincero, por isso está triste. O baterista está olhando pra essas duas, sorrindo e tocando. Intervém o piano, inicialmente com um acorde rápido. Depois, continuamente. O clarinete inicia um breve solo, ainda tímido. O clarinetista fecha os olhos e vai ao ritmo da música que ele já conhece. Lembra-se de quando a aprendeu, do que queria realizar e de todos os sonhos enormes que tinha. Não atingiu metade das metas, mas não sente tristeza, porque de todos os sonhos, o que tinha mais importância era o de poder sentir a música saindo dele, não do sopro, nem dos dedos, mas dele todo. O trompete começa a falar. O trompetista é amigo do clarinetista há muito tempo. Já tocaram juntos em tantos lugares, inclusive na viagem para Nova Iorque. Eles se olham e se entendem. A bateria, no mesmo ritmo base, dá uma virada e muda o estilo: fica mais rápida. O piano já entrou, agora tocando com mais força. É momento de improvisar. A moça sozinha, no balcão, não consegue aproveitar como de costume. Ele não vem, era evidente, ela sempre soube. De novo, ele não vem. Ela pede a conta, o garçom não ouve. Grita, mas ele não está olhando. Ela se vira e pede pro rapaz do balcão, que vai ao caixa. As duas mulheres da ponta, pra quem o baterista não pára de olhar, conversam, não se ligam no que está acontecendo em volta delas. Há dois engravatados, numa enorme mesa com um monte de gente, que também as olham e comentam, entre si, as fantasias sexuais que têm. Mas são discretos. A turma da mesa é do escritório – solo divino no clarinete – e todos estão ali por obrigação. Era um daqueles chatíssimos happy hours de trabalho. O chefe, empolgado e pensando que é querido, fala dos resultados da empresa – piano frenético, bateria crescendo. As duas meninas, a que fala do namorado e a que quer amor, não têm idéia da luxúria na cabeça dos dois engravatados. Nem da paixão que um dos três rapazes da outra mesa, o que acompanha a música com os dedos, lhe reserva. O pianista sente outra paixão, só sua. Acabou de começar a namorar. Apresentou a ela seu filho pequeno e tudo deu certo. Sua namorada chegou pouco antes e ouve a música, na mesa com um amigo e a irmã, lá no fundo. O amigo veio porque gosta da irmã, mas não tem coragem de dizer. Ela também gosta dele. Nenhum dos dois se manifesta. O pianista põe toda a paixão que sente na música, com cuidado para não se exceder, dum, drum dudududum, passa para um escala aguda e retoma o ritmo. Não há mais solos de piano, mas o ritmo de fundo é todo improvisado. O baixista não se faz perceber. É tímido, discreto e casado há muito tempo. É o termômetro da banda. O cartão da moça do balcão, que está sozinha, não passa. Problema na visa - quê? - problema com a visa!! Ela não trouxe master e fica irritada. Tira o cheque da bolsa. No fundo do bar, há um casal de estrangeiros, mas eles não estão entendendo muita coisa. O pianista está em êxtase, pensa na namorada, que o olha e também pensa nele. O calor dos dois – clarinete cresce, trompete acompanha e o baixo é perfeito – impregna o ambiente.

A música está no auge. De repente, algo muda.

O rapaz que acompanhava a música batendo com os dedos fecha os olhos, respira e se levanta. Vai até a mulher da mesa ao lado, que procura um amor. Fala com ela. Ela arregala os olhos, surpresa. Normalmente seria grossa, mas desta vez não se defende. Simplesmente ouve o que ele tem a dizer. Ele tem muito a dizer e ela gosta do que ouve. O celular da amiga toca. É o namorado, ela sai correndo do bar, porque tinha saído escondida dele. O piano intenso, começa a tocar mais rápido, acompanhando o clarinete que conduz o solo- póroró, póro, pó pórororó. O bissexual, com os olhos marejados, hipnotizado pela banda, sorri, pega a mão do colega ao lado e, virando-se rápido, revela seu segredo, tanto pro amigo, como pra si próprio. O outro arregala os olhos, engole seco, sai e, morrendo de medo, vai ao banheiro, onde se tranca, suado. O baterista esquece a prudência e começa a solar loucamente. O clarinetista e o trompetista continuam se entendendo, e tocam ainda com mais força. Ninguém mais parece saber o que faz, mas o ritmo orna divinamente. Na mesa de happy hour, o chefe, frenético, levanta, olha para o teto e começa a gritar com as duas mãos pro alto, sobre os impressionantes resultados da empresa. Mas, de repente, pára, assustado, encolhe-se e se senta na cadeira, à media que vê os funcionários vagarosamente se levantando. Todos ao mesmo tempo, olhando-o com ira e se aproximando. Baixo e bateria sincronizados, ritmo transcedental. Eles olham o chefe alucinados. Um funcionário lhe dá um soco. Os outros se aproximam e inicia-se um linchamento, ao ritmo da bateria plá, ptum, pá pá tutum. O baterista está definitivamente maluco, toca mais rápido, bate com força. O baixista tenta acompanhar a bateria, e a gomalina no cabelo se desmancha. Os dois rapazes que falavam de suas fantasias sexuais sobem na mesa, tiram a roupa e começam a rodar as calças pelo ar, gritando. A mulher da mesa da frente levanta-se e joga a aliança de noivado no chão. Retira-se enquanto o noivo, que nem lhe olha bate com as duas mãos na mesa gritando - fodaaaaa-seeeeee! A menina que queria um grande amor não tira os olhos do rapaz que a corteja e, sem mais esperar, beija-o apaixonadamente. Os dois caem no chão com mãos para todos os lados. O chefe continua sendo chutado ao ritmo da bateria. A mulher que estava preenchendo o cheque pára, joga a caneta no chão e, com o fundo de um copo, destrói a máquina do visa que não funciona. Bate insistentemente na maquininha, gritando. O som fica ainda mais intenso, puxado pelo piano. O dono do bar reclama, desesperado porque a visa cobra caro pela maquininha, e a mulher aumenta o grito e começa a socar o balcão. Ele avança sobre ela mas os garçons entram na frente e começam a espancá-lo. Ele grita “aaaahhhhh, eu devolvo, eu devolvo os dez por cento da semana passada, eu devolvo!” mas ninguém ouve, plá, papan, ptum tum tá, tá. O pianista não suporta o êxtase, grita enquanto toca, aaahhhhhhhh, louco de amor pela namorada e pela música. Ela levanta da mesa, corre, sobe no palco e se joga no colo dele. Ela o beija e ele não para de tocar. Ela desmancha todo o cabelo dele, que toca cada vez melhor. A irmã dela aproveita a ausência e a loucura, olha com paixão pro rapaz que veio com eles, põe a mão no seu rosto e parte para beijá-lo. É tudo o que ele quer, ele sempre quis. Ela se aproxima, o som é indescritível, a música é intensa e toma conta de tudo. Os linchamentos não atrapalham em nada, porque se dão ao ritmo da bateria. Os estrangeiros continuam sem entender nada. Copos se arrebentam na parede, atirados pela mulher do cartão visa. Trompete e clarinete na sintonia da bateria e do piano. Falta um dedo para o beijo esperado, eles se amam, ele sequer acredita, nunca teve coragem de beijá-la e agora é sua chance. Os olhos se fecham, as bocas se aproximam...

No momento do beijo, ele sente vergonha, medo e, inseguro e tremendo, vira o rosto.

A mulher pára, abaixa a cabeça e fecha os olhos. A música se estanca. A pancadaria pára. Todos olham o casal. Ele e ela de cabeça baixa. O chefe, no chão, está com os olhos inchados, o dono do bar também, mas ainda assim ambos se levantam, com a mão nas costas e olham. A moça e o rapaz que estavam no chão se beijando levantaram, ela arruma os cabelos e ele, as calças. Os dois rapazes descem de cima da mesa e, sem muito equilíbrio, vestem as calças, grunhindo com a garganta, aham, aham, cof, cof. Barulho de talheres pousando à mesa. Depois de alguns minutos de silêncio, todos pedem a conta educadamente, pagam e vão embora. O dono do restaurante repassa os dez por cento aos garçons. O rapaz que virou o rosto vai pra casa e chora a noite inteira.

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2 Comentários:

At 9:15 PM, Blogger Bailarina said...

Estou ouvindo o som aqui!!! Está uma loucura!!! Estou sem ar e ansiosa! Tomei água. Voltei. Fui até o final. Diria a mãe do rapaz:
"Filhinho, você não tem sorte mesmo, hein"?

 
At 9:42 PM, Blogger O Estupidista said...

Ahahahahaha!!!! Não só pra ele, pros caras que rodam as calças sobre as cabeças, pra menina que saiu escondida, pro baterista que fica olhando as meninas...

 

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